Sobre uma outra profundidade
- Igual Ao Resto
- 7 de ago. de 2021
- 3 min de leitura
Já é quase noite. Talvez no Japão algum turista esteja adormecendo por estas horas. Talvez, é algo que não lhe sei dizer ao certo.
Por conquanto, a única visão que vislumbro é a da asa do meu avião, que oscila um pouco para a direita, dirigindo-se para Sul. A luz, cada vez mais fraca, entra, e o sol põe-se. Há como que uma certa melancolia tranquila espalhando-se lentamente por todo este bicho enorme que é o avião.
Algo me diz que já não tenho muito mais tempo para escrever, que esta será, provavelmente, a última vez que o irei fazer. Assim o é sempre. Sempre o foi. É a única forma de o ser.
Lá em baixo, o mar; o amarelo esbranquiçado contrasta com o azul e forma uma praia. Talvez haja lá umas quantas pessoas, uns quantos campos ao lado, uns quantos carros estacionados e, em menor quantidade, umas pequenas casas humildes, talvez de madeira talvez de bambu. Talvez também uma linha de comboio e um rapaz que a atravesse. É algo que não lhe consigo dizer ao certo.
A asa do avião, esculpida ao milímetro, está sendo banhada pelos últimos raios de luz, alaranjados, vermelhos, e nela está refletido todo o Amor do Mundo, todos os sonhos e esperanças que as pessoas depositam nos céus. Sei-o, sinto-o. Sim, aqui mesmo, tenho a certeza.
Cá dentro, uma por uma, as pessoas começaram a adormecer. Eu, ao mesmo tempo que escrevo, vou olhando pela janela. Lá ao fundo, o horizonte parece-me azul. Talvez não seja, não lhe consigo dizer exatamente. A própria janela, a pequena janela que me permite ver este lado desta perspectiva deste mundo está agora coberta do sol que morre: amarela e com um pequeno traço rosado. Talvez seja Deus. Não lhe consigo dizer ao certo o que seja.
Algo corre pelo ar: uma melancolia serena, intensa, que se espalha na totalidade pelo avião e as pessoas que a acolhem de livre vontade. Já lhe disse que não consigo dizer precisamente como, mas sinto-a, agora, rebombando em mim, com todo o seu esplendor, em toda a sua plenitude. A luz fraqueja ainda mais e lá em baixo encontra-se a costa recortada de qualquer país, belíssima, a terra cortada a meio pelo mar. Que mais se pode querer? Sinto um grande Amor em mim. Por quem? Não lhe sei dizer ao certo. Pelo quê? Ainda menos. Talvez por este sol, por esta Terra, por este planeta, por esta melancolia.
Se estiver a ser honesto, receio que não seja a pessoa mais indicada - nem a mais competente - para lhe relatar esta experiência, para lhe descrever a vida, toda ela, refletida por momentos na pequena janela do meu avião. Uma de dezenas, centenas de janelas. No entanto, a minha.
É verdade, sim, o que é que quer que eu lhe diga ? Contrataram-me, sim, mas sabia lá eu para quê?! Contrataram-me, sim, mas sabiam lá no que é que se estavam a meter?!
Não serei com certeza a pessoa correta. O sol, a água, a água do mar, o movimento das marés, o vento, a turbulência são tópicos indescritíveis, sabe? Também os trovões e o calor; e ainda mais o Amor, o que o que corre agora nas minhas veias, o que me invade o espírito. Porque, sabe? O que é que eu sou ? Um homem, um rapaz, que sente melancolia quando, no avião que habita temporariamente, a noite vai caindo… Por que, que mais? Um poeta…? Não! o poeta não existe, o poeta é alguém que bebe e se alimenta do vento e que anda perdido entre estações de comboios para Antuérpia. O poeta não anda de avião; não, que absurdo! o poeta move-se pelas estrelas e anda a pé, condensando toda a sua angústia, todo o seu amor (duas palavras que, aliás, significam o mesmo) e espalhando-o pelas ruas escuras da aldeia no sopé da serra, andando por elas até que os pés lhe doam. Chegado a esse ponto pára. Não volta atrás.
A luz entrou outra vez devagarinho, sensualmente, e voltou a sair.
Já é quase de noite e as teclas do meu computador vão martelando, uma a uma, e fazendo ruído.
Em mim, existe agora apenas um vazio enorme e um Amor que o suplanta. O medo de morrer evaporou-se com o sol e
tenho apenas um último desejo: abrir a janela e voar; cair no preciso momento em que o último raio de luz desapareça da Terra.
Eu sei.
Já lhe disse: estou muito alto.
Tomás Castello Branco
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