Se ao menos tivessem olhado para o céu
- Igual Ao Resto
- 22 de jun. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 15 de jul. de 2020
À medida que vou conhecendo melhor a raça humana, um pensamento agrava-se na minha cabeça: o de que perdemos a alma. Não sei especificar um acontecimento ou idade histórica ao certo — se na idade medieval se no tempo dos Faraós e do Antigo Egito; se na época em que os Vikings invadiram a atual Inglaterra se na Primeira ou Segunda Guerra Mundial — ou mesmo se ela foi desaparecendo de nós aos poucos, morosamente; só acho que as perdemos.
Não gosto de escrever coisas clichês e odeio-os frequentemente, mas a realidade é que muitos clichês só o são por serem verdades que foram repetidas demasiadas vezes.
São inúmeras as coisas que me incomodam — muitas mais do que é saudável para um humano normal, quanto mais para um puto de dezasseis anos — mas a verdade é que importunam e, para além da puta da mosca que não para de fazer barulho enquanto tento escrever e não partir a mão na parede ao tentar matá-la, há muitas coisas que me incomodam e irritam. Não tenho o tempo necessário para as enumerar a todas visto que ficaria aqui o dia todo, literalmente (já que sou lento e chato e perfecionista a um nível ainda mais chato a escrever) mas posso revelar uma delas: o facto de, como já disse em cima, termos perdido a alma, o espírito puro que corria antes dentro de nós. E o problema é que as pessoas ligam muito a alma à religião, e muitas fazem das duas um só, havendo algo de profundamente errado e comichoso nisto tudo.
Há algo de incorrecto e desacertado na religião Cristã e, apesar de quase nunca ter soluções para nada, gosto sempre de apontar o dedo aos defeitos dos “outros” e divirto-me e rio-me enquanto faço, até por que me estou a cagar.
O que me leva ao que eu efectivamente queria desabafar: que foram muito poucas as vezes em que me senti com tão pouca fé, com tão pouca alma, como quando visitei o Vaticano.
Claro que fiquei deslumbrado com a grandiosidade dos edifícios, com a majestade dos monumentos, com a preciosidade das relíquias e das estátuas, com os desenhos magníficos, com as pinturas divinais (admito que sorri com esta palavra), com o ouro e com a prata, com os museus de sete quilómetros; mas daí nada mais veio e uma pequena irritação muito característica de mim começou a ser despoletada. Digo isto apesar do Vaticano não ser um sítio exclusivamente religioso mas igualmente um armazém repleto de tesouros históricos, tendo em conta que a história e a religião andam muitas vezes de mãos dada, chegando até muitas vezes a entrelaçar línguas e a tocarem-se em sítios... bom, enfim.
Entrei na Basílica de São Pedro: o sítio mais importante do Cristianismo, e não pude de deixar de pensar que não fazia ideia do porquê de tanta admiração por aquele local. Claro que a Basílica é gigantesca, coberta de ouro e de estátuas lindíssimas, e repleta de tantas e tantas coisas indescritíveis de tão belas que são, e sim, claro que senti admiração e claro que achei tudo belíssimo, mas... e então? Para além desse mesmo espanto e admiração para com a obra de arte deslumbrante que os humanos fizeram para Deus, não senti nada. Não senti qualquer tipo de fé, não senti sequer que Deus existisse quanto mais que estivesse ali presente, não acreditei que fosse possível que nem metade das pessoas que estavam presentes na Basílica acreditassem plenamente e, sobretudo, não achei que nada de aquilo fosse justificado. Para quê? Porque haveria Deus de querer aquilo tudo? Porque haveria de querer tanta riqueza dedicada a si, quando a riqueza e o ouro (e a exibição de ambos) não deixam de ser coisas brutalmente humanas. Porque, apesar de ser belíssima, aquela catedral não deixava, inevitavelmente, de ser humana: construída, pintada e ornamentada por humanos (independentemente da sua genialidade) e não deixava de ter pequenas falhas, mesmo que fossem milimétricas, humanas.
Ao ver a minha família entrar na parte da catedral onde se celebrava a missa, deixei-me ficar para trás “inocentemente”, como quem não sabe o que vai acontecer, dado que não me apetecia apanhar uma enorme seca ao acompanhá-los. Vendo-me sozinho e tendo muito tempo livre, voltei a percorrer a Catedral e a sentir-me maravilhado e arrebatado por tudo o que se apresentava magnífica e sedutoramente aos meus olhos, mas não sentido, em momento algum, a presença de Deus naquele lugar, muito menos no meu coração e ainda menos na minha alma.
Olhei para o meu relógio e os ponteiros dourados mostravam que eram cinco e meia da tarde. Fui lá para fora e debrucei-me sobre o parapeito (não é bem um parapeito mas pronto) da entrada da Catedral, pousei o meu olhar sobre a praça de São Pedro e depois de uns quantos minutos a observá-la, algo chamou a minha atenção: o céu. Este estava realmente venusto e formoso, e, tendo ou não Vénus dado uma mãozinha para compor a sua beleza, a verdade é que estava magnífico: um azul claro contrastava com um azul mais escuro e o sol, que ia caindo para o seu retiro nocturno lá por detrás da linha de horizonte, ainda fornecia luz suficiente para iluminar a praça e grande parte da abóbada celeste (apesar de o fazer com pouca intensidade). Lá ao fundo um laranja começava a despertar por entre as nuvens enquanto um bando de pássaros voava harmoniosamente ao sabor do vento por cima de edifícios de mármore por onde já tinham passado milhares ou mesmo milhões de pessoas, que estavam lá há largas centenas ou poucos milhares de anos e para onde eu olhava naquele momento. Escusado é dizer que foi o momento mais bonito de todo aquele longo dia. Mais do que estátuas de ouro ou de mármore, mais do que as pinturas de Miguel Ângelo, mais do que a riqueza da catedral, mais do que a enormidade de todos aqueles monumentos, mais do que os artefactos imesuravelmente valiosos: o céu, esse que não foi criado por humanos. O céu que, no meio de tantas coisas riquíssimas e com anos e vidas de trabalho em cima, com um valor religioso, cultural, monetário e histórico incontável, me fez sentir mais próximo de Deus, que me fez ter um pouco de fé, coisa tão rara em mim.
Não me é possível determinar com exactidão quanto tempo o fitei, mas, se tivesse que apostar, diria que deve ter sido uma meia hora ou uns quarenta minutos. Nesse período de tempo muitos apreciaram a vista a meu lado, ainda mais tiraram fotografias rápidas da praça e do céu, mas nenhum deles se prolongou nestas actividades por mais de cinco minutos e os que chegavam aos cinco olhavam para mim como se fosse louco por estar ali há tanto tempo.
A minha família eventualmente saiu da missa e veio ter comigo, e eu eventualmente deixei de olhar para o céu — até porque ficou de noite.
Metemo-nos apressadamente em dois táxis porque estava a chover, chegamos ao hotel e passada outra meia hora (usada para tomar banho e para nos arranjarmos), saímos do Hotel, novamente de Táxi, para irmos jantar a um restaurante. Na conversa de jantar irremediavelmente surgiu a conversa do que havia acontecido naquele dia. Não foi sem alguma (ou com muita) irritação que ouvi falar no “pequeno milagre” que havia sido “termos apanhado aquela missa” com tão pouca gente, àquela hora e naquele dia em específico, na catedral mais importante do Cristianismo.
Tudo tão humano, tão pequenino e insignificante. Pensei eu em silêncio.
E enquanto eles falavam daquele pequeno milagre, daquela bênção que tinham recebido e agradeciam (sabe-se lá a quem), eu pensava para mim mesmo:
- Se ao menos tivessem olhado para o céu...
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