Quanto tempo me resta para odiar clichês?
- Igual Ao Resto
- 24 de mai. de 2020
- 10 min de leitura
Bom, não sei bem por onde começar. Na verdade nunca sei. E digo sempre isto: ”Bom não sei muito bem por onde começar”, ou qualquer coisa do género. Que estupidez. Mas é verdade. Nunca sei como começar a escrever um texto. Se começo bem, então tudo parece sair naturalmente. Como se fluísse livremente da minha cabeça para a caneta, da caneta para o papel e do papel para quem quer que tenha paciência para ler o que escrevo. Porque nunca ninguém parece ter paciência para ler o que eu escrevo, especialmente as pessoas da minha idade, que ficam aterrorizadas e pasmadas quando vêm umas dez páginas. O pior nem é no início. No início não se surpreendem assim tanto. Dez páginas não são propriamente um livro, apesar do último que leram por livre vontade ter sido o Gerónimo Stilton. O pior é quando comparam as dez páginas com o que costumam ler (e já a custo): as descrições dos posts do Instagram. Isto é, quando as leem e quando são mais do que emojis.
Não desfazendo, de forma alguma, os abnóxios emojis. Se não tens nada de jeito para dizer, não digas, a sério, mete uns emojis e caga nisso.
Sinto-me perdido nesta geração e odeio-a frequentemente. Não a pessoas em concreto, mas à geração num todo. E não é só a ela que odeio, mas a tudo o que lhe está associado: redes sociais, falsidade, arrogância, o politicamente correto, desinteresse, falta de informação e por aí em diante. Odeio-a apesar de fazer parte dela e serem poucas as ações tomadas para a mudar. Não me julgues. Somos todos hipócritas, nem que seja uma ou outra vez, nem que seja inconscientemente, e eu não fugo à regra. Até devo ser o mais dramático e exagerado sobre algumas das coisas em que penso, que escrevo e que sinto (incluindo esta). Até mais que uma pita influencer.
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Já há algum tempo que penso nisto e sempre que o faço existe algo, seja um vídeo, uma frase, uma passagem de um livro, que vem posteriormente reforçar este pensamento e acrescentar-lhe outros pontos de vista. Quanto tempo? Quanto tempo é que tenho?
Apesar do tempo muitas vezes nos parecer infinito e inesgotável (especialmente quando temos 16 anos e tudo nos parecer tão longe, tão distante, tudo de aqui a tanto tempo), ele passa. E está perpetuamente a contar. Sempre. Nunca para. Nunca. Nem quando estás a dormir. Nem quando morres. Já contava muito antes de tu nasceres e vai continuar a contar muito depois de tu bateres a bota. Há sempre um relógio que conta os anos, os meses, os dias, as horas, os minutos e os segundos. Tiquetaque. Tiquetaque. Ouve-o bem. Mais alto. Tiquetaque. Sei que consegues. Estás com o barulho de segundos a passarem na tua cabeça e danado comigo por causa disso. Apesar de “tiquetaque” ser uma maneira bastante absurda e irritante de reproduzir o som de um relógio. Algumas palavras atormentam-me e vá se lá saber porquê. Sou relativamente estranho, de vez em quando, especialmente com palavras que me irritam. A sério Tiquetaque? Foda-se.
Mas ele passa e até mais rapidamente do que tu pensas. Tiquetaque. E passou mais um segundo. E mais outro e outro. E passam tão rápido, os segundos.
Tudo isto, apesar do tempo não passar de uma invenção humana. Porque não passa disso. Tal como a religião, o tempo não passa de um conceito, de algo que os humanos inventaram para explicar o inexplicável, como a passagem do dia para a noite, o envelhecimento e a morte.
E a morte e o tempo estão profundamente ligados. A cada lufada de ar fresco que inspiramos, as nossas células envelhecem e damos mais um pequeno passo no longo trilho que nos levará à morte. Estamos a morrer, lentamente, desde o dia em que nascemos.
E é por isso que o tempo e a morte são fudidos de perceber: porque não os controlamos. Tiquetaque. Não consegues controlar o tempo. Ele simplesmente passa, sem tu te aperceberes. Tiquetaque. E não o podes comandar e gerir como queres.
Por mais que queiras que determinada situação passe o mais rápido possível, ela não te obedece. O tempo só parece abrandar, como se a tua arrastada e duradoura tortura fosse pitoresca e motivo de riso. Por mais que queiras guardar certos dias, noites, horas, minutos ou mesmo segundos e fazê-los durar o mais possível, eles não param. O tempo só passa mais efemeramente.
E também não controlas a morte. (Quer dizer, não controlas a morte a não ser que sejas Hitler, o Estado Islâmico, o Diabo, um homem armado numa escola americana ou uma prostituta com SIDA. Presumo (e espero) que não sejas nenhum dos referidos em cima, portanto não mandas na morte e não a entendes plenamente.)
Pessoas morrem de formas inesperadas e inimagináveis, recorrentemente demasiado novas, demasiado boas para serem colhidas tão cedo e não há nada a fazer.
O que me leva ao acontecimento que me inspirou a começar a escrever às quatro e tal da manhã de uma noite fria de inverno onde a nostalgia das quentes e longas noites de verão chega e tarda em partir.
Se há algo que eu acho que não tenho é tempo. Há sempre algo para fazer e sinto que não tenho tempo. Que não sou tão livre como desejaria, mas isso é outra conversa.
Nestes dois últimos dias em que estive de férias, vivenciei a experiencia de como é ter tempo. Tive tempo para arranjar a minha bicicleta parada há uns meses devido a um simples pneu furado que, depois de uns 5 minutos na Decatlhon, estava como novo; tive tempo para ler, para ver uma série num dia, enfim para fazer o que bem me apetecesse.
Eram três e tal da manhã, e estava a ver um filme , tranquilo e contente (por ter tempo e pela ausência de preocupações) quando a minha irmã entrou em casa, deixou cair as chaves na mesa da entrada, fazendo um barulho bastante sonoro e distinto, acordou o cão, deixando-o numa furiosa excitação e a bater com a cauda em todo o lado, e subiu as escadas. Entrou na sala onde eu estava, eu acenei-lhe e continuei a ver o meu filme.
Passados uns minutos, entrou novamente pela sala adentro e disse que precisava de contar “isto” a alguém, que precisava de desabafar.
- Claro – disse eu- podes contar, é na boa.
E então contou-me que estava triste porque um dos seus amigos da faculdade estava a passar por um mau bocado. Fazia, naquele dia três anos que a irmã dele tinha morrido num acidente de carro na Marginal, e a minha irmã foi ao seu encontro para verificar se estava tudo bem, como os amigos fazem.
O seu estado não era o melhor. Odeio falinhas mansas. Era uma merda. O gajo estava na merda. Como se já não fosse traumatizante, triste e depressivo perder a única irmã num acidente de viação, num desastre, num infortúnio, este gajo tinha perdido os três melhores amigos num acidente de carro há uns escassos dias. Foda-se. Como assim?
E era suposto ele ir nesse carro, nesse que se despistou, mas por alguma razão que não percebi não foi e salvou-se. Salvou-se mas perdeu os três melhores amigos.
Eram quatro no carro. Quatro amigos de dezanove anos. Iam passar a Passagem de Ano no Algarve e provavelmente iam radiantes a pensar nas noites que tinham pela frente, a ouvir música ou a conversar. É me impossível saber porque estão mortos e não lhes posso perguntar.
O pneu de trás soltou-se, o carro capotou e saiu da estrada a alta velocidade, indo disparado contra umas rochas da berma. Um deles morreu imediatamente. Os outros dois morreram depois de uns dias em coma. O outro, o condutor, “safou-se” com um braço partido, mas com um desgosto, um trauma e um sentimento de culpa e de responsabilização pelo sucedido, que o levou a tentar suicídio, sem sucesso. Se acreditasse rezaria por ele, juro.
Não me vejo como uma pessoa super sentimental que está sempre a chorar, e até posso dar a imagem de uma pessoa insensível, mas até tenho alguns sentimentos. Não sou sentimental. Sensível.
Mas quando ouvi esta história só me apeteceu chorar. Nem pensei na razão de me apetecer tanto chorar, simplesmente senti uma dor incontrolavelmente forte no peito e apeteceu-me ainda mais deixar-me ir numa corrente de lágrimas.
Aguentei-me durante um minuto ou dois, como um homem, porque os homens não choram.
Até que me vim abaixo e deixei as lágrimas salgadas correrem livre e fartamente pela minha face, porque, às vezes, os homens também choram.
Os homens até choram, mas será que conseguem explicar as emoções? Mais difícil. E eu não fugo à regra. Não estava a ser capaz de explicar o motivo de tanta choradeira. Não o sabia explicar, porque nem eu conhecia os meus próprios motivos.
Até que me apercebi. Tudo fez sentido. Senti-me culpado por estar feliz a ver um filme, enquanto há tantas e tantas pessoas a sofrer, e tantas tão perto de mim. De início considerei a situação tremendamente injusta e senti-me mal comigo mesmo. Senti que a culpa era minha, senti-me um monstro repulsivo e desalmado.
Até que, não sem algum custo, lá consegui soltar algumas palavras. Estas saíram com dor e aos soluços, numa linguagem mais atabalhoada e menos perceptível do que a de um bebe autista.
As palavras de bebe autistas transformaram-se em palavras mais coesas e com mais sentido, as lágrimas abrandaram, e consegui finalmente expressar o que me danava a alma.
Foi então que a minha irmã disse, algo semelhante a isto: (se bem que em várias partes, porque eu ainda não aguentava muito tempo seguido sem chorar como uma menina).
- É perfeitamente normal que sintas que é injusto. O mundo é fudido, há coisas que não controlamos e que nunca poderemos controlar, porque é mesmo assim. Não te devias fustigar com tanta culpa, devias sim estar agradecido. Agradecido por estares num país onde tens liberdade para veres qualquer filme que queiras, agradecido por teres um sofá e eletricidade, agradecido por teres um cão tão querido, agradecido por teres uma mana, uns pais, um irmão, avós; amigos e família que te adoram e que querem apenas o teu melhor. Agradecido por seres quem és, por teres essa mente brilhante e esse coração tão bom. Mas tendo um coração tão bom, não podes sentir a dor dos outros. Isso só te faz pior. O mundo não fica um lugar melhor por causa disso, e só te agonias a ti mesmo desnecessariamente. Pronto, agora! não te sintas culpado, e vai ver o filme porque podes e está grato por teres essa possibilidade.
- Aproveita bem o tempo - disse eu, olhando para o vazio.
- O quê? Como assim? Quer dizer, faz sentido mas não era propriamente aí que eu estava.
E enquanto a minha irmã continuava a falar, a sua voz foi se tornando cada vez mais baixa e mais distante até que cheguei a um ponto em que só me ouvia a mim mesmo. A minha cabeça estava a ser inundada com pensamentos e ideias para este texto que tu lês agora, e, principalmente, com um pensamento que já havia sido pensado, mas que agora ganhava mais força.
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Quanto tempo?
Quanto tempo temos?
Quanto tempo nos resta?
Quanto tempo gastas em coisas supérfluas e inúteis?
Quanto tempo é que gastas agarrado ao telemóvel, só para te entreteres num mundo falso e que não existe. Para te entreteres com mais um like, com mais um comentário, com mais uma mensagem de uma pessoa que só te usa para se entreter a ela própria, sem querer saber de ti. Tanto entretenimento estúpido e só ficas mais triste. Entretenimento que só serve para matares tempo, a coisa mais preciosa que tens. Mas és burro caralho?
Quanto tempo gastas num curso que não gostas, só por obrigação e dever?
Quanto tempo gastas com pessoas de quem não gostas?
Quanto tempo gastas numa sala de aula a ouvir matéria de que não gostas, num escritório a trabalhar numa área de que não gostas e a desejar estar em todo o lado, menos ali?
Quanto tempo gastas a ouvir música de que não gostas, só para os teus “amigos”, de quem se calhar também não gostas assim tanto, acharem que és fixe?
Quanto tempo gastas a pensar no que os outros pensam de ti, se te aprovam ou se te rejeitam?
Quanto tempo gastas chateado com os teus pais quando há pessoas que davam tudo para ter os seus de volta?
Quanto tempo gastas zangado com os teus amigos (aqueles de quem gostas) quando há milhões de pessoas que desconhecem a sensação que é ter um amigo de verdade?
Quanto tempo gastas a pensar em como poderia ter sido, em vez de realmente tomares ações?
Provavelmente muito, mais do que gostarias.
Quanto tempo passas a ler?
Quanto tempo passas a fazer algo de que realmente gostes?
Quanto tempo passas com os teus avós, irmãos, amigos ou pais? Quanto desse tempo é bem aproveitado?
Quanto tempo dedicas a ti, quanto tempo dedicas para seres melhor pessoa e estares sempre a melhorar?
Quanto tempo passas em contacto com a Natureza, em vez de estares fechado numa casa pequena a criar utopias que nunca acontecerão porque não levantas o cu do sofá?
Quanto tempo passas a pensar em coisas que te façam bem?
Quanto tempo passas a ajudar os outros?
Quanto tempo passas feliz?
Pois é. Provavelmente não tanto como desejarias.
Quanto tempo vais deixar passar até dizeres às pessoas que as adoras que efetivamente as adoras? Nunca sabes qual será a última vez que as vês.
Quanto tempo vais deixar passar até parares de te preocupar tanto? Quanto tempo vais deixar passar até mandares aquela mensagem?
Quanto tempo vais deixar passar até fazeres aquela viagem com que sonhas há tanto tempo?
Quanto tempo vais deixar passar até seguires os teus próprios sonhos, por mais loucos e irrealistas que possam ser e por mais que os outros te tentem deitar ao chão?
Quanto tempo vais deixar passar até permitires à tua chama, aquela coisa especial que tens dentro de ti, vir ao de cima?
Quanto tempo vais aproveitar?
Quanto tempo vais desperdiçar?
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Morte e tempo. Duas coisas que não controlamos.
Não controlamos quem morre, quando e onde. Não nos compete a nós. Não controlamos a passagem do tempo, não controlamos a passagem dos segundos, nem a sua rapidez.
Apenas controlamos o que fazemos com eles. Da mesma forma que apenas controlamos a forma como lidamos com a morte. Se deixamos que ela nos destrua ou se fazemos dela algo que nos fortifica.
Controlamos a maneira como passamos o tempo: se o gastamos inútil e desinteressadamente, ou se o aproveitamos ao máximo.
E há sempre um relógio a contar o tempo. Não te esqueças. Tiquetaque. E nunca para.
Cabe-te a ti saber usá-lo.
Aproveita-o. Aproveita-o por aquela pessoa que conheces e que está doente, incapacitada ou morta. Aproveita-o por estes três rapazes de que te falei, cujo tempo aqui na Terra acabou. Aproveita-o porque nunca sabes quando vai chegar a tua hora de partir.
Tiquetaque.
Passaste uns largos minutos a ler isto, e eu, umas largas horas a escrever. Não deixes que este tempo seja em vão. Não deixes que seja só mais um texto. Muda a forma como vês e como vives o tempo. Usa-o; não o gastes.
Faz o que tens a fazer, segue os teus sonhos, dá o máximo para alcançares a felicidade e dá um pouco da tua aos outros.Vive com vontade e morre sem arrependimentos.
Porque vida? Só tens uma. E o tempo? Uma vez gasto, não volta atrás.
Tomás Castello Branco
Gostei muito!
Muito bom e muito profundo. Adorei