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Os olhos da Serra

Os olhos. Os olhos de um pequeno rapaz que vivia no campo observavam tudo o que o rodeava. Pensava como era possível que as serras fossem tão altas, tão altas que ele, sendo tão pequenino, nunca conseguiria chegar ao seu cume e ver toda a planície de cima. Pensava como era possível que houvesse tantos animais, árvores, rios e riachos; lugares e animais fantásticos que existissem e percorressem todas estas serras e que ele nem fazia ideia da sua existência. Gostaria de os visitar e de os conhecer, mas não podia. Pensava no sol que iluminava tudo à sua volta, que aquecia a sua pele e que tornava tudo mais bonito e luminoso. Pensava no céu azul como o mar. Nunca havia visto o mar mas conhecia-o. Conhecia-o porque o sábios da aldeia o descreviam com grande pormenor e com um sorriso nos lábios.

Absorto em seus pensamentos, o rapazinho nem reparou na sua mãe que o chamava há já algum tempo:

- Tomás! Anda para casa que já está a ficar escuro! Porque ficas horas aí fora com os cães a olhar para a serra?

Então o menino começou a contar à sua mãe que simplesmente gostava de a olhar. Gostava de olhar todos os seus cantos e recantos com os seus binóculos. Gostava de imaginar todos os animais que lá viviam e como seriam. Gostava de um dia subir ao cume. Gostava de imaginar tudo o que esta serra já havia visto: a primeira vez que os homens chegaram lá (confusos e espantados por terem descoberto um mundo completamente diferente daquele em que viviam), e todas as guerras, conflitos, disputas, histórias de amor e de amizade e, principalmente, mudanças que trouxeram com eles.

E agora, a serra olhava para ele e para a sua mãe a falar à porta de uma casa grande, com os cães entristecidos por ele se ir embora, com a luz a fraquejar e o sol quase posto, onde o fumo da chaminé saía cada vez mais escuro porque estava frio.

Contou à sua confidente que gostava que a serra lhe pudesse contar tudo aquilo que vira. Mas não podia. As serras não falam. Se falassem...

Contou ainda que sentia inveja dos cães, da sensação de liberdade e de felicidade ingénua e inconsciente que estes lhe transmitiam. Sentia inveja porque estes tinham à sua disposição provavelmente o sítio mais místico da terra. Sentia inveja nas longas e quentes noites de verão, nas quais os cães ladravam e o protegiam a ele, à sua família e ao território em que viviam seja de outros cães, animais da serra, possíveis ladrões ou mesmo do comboio que passava na antiga e gasta rede de caminhos de ferro, e que fazia tanto barulho que os cães o consideravam uma ameaça. Nessas noites abria a porta de casa e ia lá para fora. Não conseguia resistir. Olhava para o céu, contemplando todas as suas estrelas e perguntava-se quem havia criado um mundo tão belo. Nessas alturas acreditava em Deus. Não quando ia à igreja, não quando rezava, mas naquelas alturas. Sentia-se em paz e completo.

Sabia que aquelas noites não voltavam. Sabia que quando estivesse no inverno, sozinho em casa, a chover, lembrar-se-ia destas noites e voltaria a encontrar esta sensação de paz.

Já com o sol nascido, o menino voltava com sono para a sua cama. Enquanto não adormecia, voltava a pensar nos cães. Agora sentia uma certa pena deles. Nunca tinham visto mais nada. Adormeceu.

Acordou quando o sol estava a meio do horizonte. Eram quatro da tarde. Desceu as escadas para a sala. Aí encontrou a sua família a comentar com um tom preocupante algo que não conseguiu perceber. Perguntou o que se passava e o seu pai respondeu-lhe:

- Os cães fugiram Tomás. Não sabemos onde é que eles estão.

Lembrou-se então da serra. De tudo o que a tornava tão bonita. E respondeu calmamente:

-Eles fugiram para a serra tenho a certeza! Também a devem querer conhecer! Já sei! Se calhar foram ao cume.

Imaginou-os lá em cima olhando para baixo, para onde ele estava. Imaginou-os felizes, com a língua de fora, com o seu olhar paciente e contemplativo. Estariam bem. Um pouco sujos, provavelmente, de todas aventuras e caminhos lamacentos que haviam percorrido nas últimas horas, mas bem.

Saiu lá para fora e gritou meio feliz por eles, meio revoltado:

- Ao menos levavam-me convosco...

Tomás Castello Branco

2 comentários


valente.guilherme24
28 de mai. de 2020

Muito bom!

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mafarosil
25 de mai. de 2020

Pois. Só tu poderias escrever este texto. Gostei muito

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