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Intensamente livre

Atualizado: 15 de jul. de 2020

Passava das duas da manhã quando bati no vidro do Chapeleiro. Chapeleiro era o toda a gente chamava aquele, na verdade, florista do Chiado anoitecido. Vendia cravos entre muitas outras mercadorias, e trabalhava com luvas de pele calçadas, impecáveis, sempre. A loja era de tal modo apetrechada de coisinhas miúdas, antigas, barrocas, poeirentas que quase passava despercebida a aparência do Chapeleiro. Juro que às vezes me lembrava de ter um bigode onde se condensavam angústias crescentes; outras de que era mas era ruivo. Ou coxo. Demasiadas vezes pormenores nunca antes notados teimavam em esconder uma imagem completa.

De conversa, o Chapeleiro tinha muito assunto. Deambulava sobre um Beirute ou um Zaire, Mongólia ou Roménia nos anos 60. Lugares onde, no meu mapa-mundi mental, se tentava acender uma luzinha de indefinição geométrica, senão geográfica. Muita agitação, sítios de muita agitação. Sobre um sítio dizia de criancinhas a pedinchar pastilha elástica, como de outras chamava de cidade fumegante. Ou então, sobre outros lugares ainda, desenhava complicados arabescos no ar, arabescos de betão e intriga política.

Acabadinho de regressar a Portugal, passadas já as das duas da manhã, senti pouca disposição para ouvir falar de massas e costumes. Chapeleiro, disse-lhe, tu falas demais. Vamos embora daí, levanta o rabo e traz-me o envelope. Não posso, disse ele, não posso e tu sabes bem porquê.

Escusado será dizer que este te envelope estava envolto num misticismo que só me fazia querer saber tudo a seu respeito, abri-lo, despi-lo e, quando o tivesse aberto e desvendado, atirá-lo às sete marés e por elas deixá-lo ser arrastado, sem que uma única alma pudesse sequer sonhar com a sua existência.

Falar dele era quase tabu. Mesmo assim, conversas a seu respeito e deambulações sobre o que poderia conter tornavam-se frequentes quando ajudadas por uns quantos copos de vinho tinto. Alguns falavam dele como uma espécie de cofre onde se guardava todo o tipo de coisas absurdas como mapas para dimensões paralelas e um registo pormenorizado de todos os sonhos já alguma vez tidos; outros afirmavam que dentro dele se encontrava uma prova real que Deus existia e vestígios de uma invasão alienígena e, para alguns cuja sanidade mental já vira melhores dias, aquele envelope continha tudo o que o ser humano queria saber: amor, existencialismo, poesia no telhado de um prédio abandonado, uma pitada de canela que voava livremente pelo ar e, mais importante de tudo: liberdade em estado puro, apalpável e até consumível. Mas relativamente poucas tinham sido as pessoas que haviam ouvido falar dele e, para mim, era simplesmente mais um envelope da CTT, pelo menos em termos de aparência. Contudo havia algo de perturbador e de obtuso na sua presença; algo que me fazia querer mergulhar no recheio das estrelas em noites embrumadas e de nelas me perder para sempre.

E lá estava ele: intocado e inacessível nas mãos duras e calejadas do Chapeleiro, numa noite onde na rua não caminhava ninguém. O normal para aquela altura do ano era estar calor e bom tempo, mas um vento gélido e um nevoeiro espesso deixavam a cidade fantasmagórico e pouco propícia a passeios.

O meu voo havia sido longo, muito mais longo do que seria expectável para um voo entre cidades do mesmo continente. A conversa do chapeleiro, que tantas vezes me havia entretido e feito passar horas destinadas ao tédio, aborrecia-me tremendamente. O ar era fortemente percorrido por uma mistura entre a álcool destilado e mijo de cão, e eu estava francamente cansado e sem paciência para conversas.

- Já te pedi - disse-lhe – e não quero esperar nem mais um segundo. Levanta o rabo dessa loja e traz-me o envelope.

Saímos e começámos a andar pelas ruas desertas do chiado. O som dos nossos passos ecoava contra as paredes dos prédios adormecidos e a tensão entre nós dois era notável. A conversa, antes sempre tão fácil de arranjar, era agora inexistente.

Um qualquer bêbedo estava a beber sozinho num bar escuro e muitos bêbados estavam certamente a beber em qualquer local duvidoso que não visitariam à luz do dia. Tudo aquilo e muito mais acontecia precisamente naquele preciso instante; precisamente aquando aquele passeio noturno. O que se estaria a passar no resto do mundo que não em mim, na minha cabeça e naquela rua do chiado? Estes pensamentos, apesar de corriqueiros e triviais, distraíam-me do silêncio tenso e constrangedor que me parecia rodear e gozar comigo. Quando ouvi a voz do Chapeleiro não me foi possível perceber o que ele tinha dito à primeira.

- Perguntaste alguma coisa?

- Estava a questionar onde está o teu carro e para onde vamos.

- O carro está a cinco minutos. Quanto ao nosso destino, meu caro, é me impossível dizer qual será. Há coisas que se vão descobrindo à medida que se vivem e, neste caso, para onde irei guiar será algo que só saberei quando o começar a fazer.

No meu bolso estava um maço de tabaco com nove cigarros de uma qualquer marca barata. Fumei dois a caminho do carro e, quando abri a porta do velho Jeep amarelo, amaldiçoei-me por não ter já comprado mais. Estava-me mesmo a apetecer fumar. Noites frias como aquelas – noites em que somos abandonados ao vento e à chuva e em nos cismamos a olhar para as gotas a caírem - são extremamente aliciantes para a actividade.

As ruas estavam desertas e o sono instalara-se em mim. Desejava liberdade de espírito, liberdade em estado puro, mas nunca a conseguiria alcançar enquanto não abrisse aquele envelope.

Apenas esporadicamente avistava eu outros carros e para onde me dirigia era indiferente: limitava-me a fazê-lo. À memória vem me apenas a recordação de, ao passar numa rua onde havia inúmeras árvores de ambos os lados da estrada, ver dois jovens de mãos dadas a rirem enquanto fugiam da chuva, e de como tive inveja da sua felicidade e do seu amor. Tinha trinta e dois anos naquela altura e, para além de uma licenciatura que nada me dizia e de um livro de sonetos de segunda categoria que nenhuma editora aceitara publicar, a minha vida era tão vazia como um folha que é esquecida algures e levada pelo vento.

Continuei a guiar durante cerca de uma hora e quanto mais guiava mais o sono se acomodava em mim e mais as minhas pálpebras cansadas começavam a fechar-se. A um determinado ponto deixei de conseguir resistir e adormeci.

Não devo ter adormecido mais do que uns escassos segundos. Nesse curto período de tempo, a morte havia vindo cumprimentar-me, sorrido na minha cara e, se não fossem os gritos do Chapeleiro, teria-e arrastado e levado com ela. Por entre os destroços a polícia teria seguramente encontrado, na minha carteira, um documento de identificação com o nome Severino Ramos, ou mesmo Carlos Nascimento. Não me relembro ao certo qual dos documentos usava eu na altura, mas ambos eram falsos: artimanhas que usava para entrar e sair do país mais facilmente; e o meu verdadeiro nome já nem eu o sei.

A minha vida fora salva, num momento, num ápice, pelo Chapeleiro, e não me era permitida qualquer queixa enquanto ouvia os seus insultos e gritos estridentes. Quando estes cessaram, um profundo silencio instalou-se naquele carro enferrujado. - Paramos na próxima área de serviço. – disse eu.

Era longe, ainda. Quando parei o carro senti-me tremendamente aliviado por estar vivo e por não ter morrido naquela fria noite. O relógio marcava as quatro e um quarto da manhã, e o funcionário da loja – que certamente não esperava clientes àquelas horas – comia um pacote de batatas por detrás do balcão .

- Era um café, se faz favor. – pedi eu.

Olhei para a sua cara e reparei nas marcas de borbulhas e na barba adolescente por fazer. O café não estava nada de especial – um pouco aguado talvez – e bebi-o de um só gole.

Entrei de novo no carro e segui caminho. A minha cabeça arreliava-se de ainda não ter aquela merda de envelope. O tempo passava lentamente. Acendi outro cigarro e liguei a rádio. Estava num estado quase de transe, deixando a estrada correr por mim desafogadamente.

Olhei para o lado e reparei que, no rosto normalmente indecifrável do Chapeleiro, havia uma expressão. Não me recordo exactamente dos seus detalhes (se era feliz ou zangada, contemplativa ou aborrecida) mas, no rosto daquele homem, qualquer sinal de emoção ou expressão era como encontrar prata num antiquário de pedras e luares ao Sábado à tarde.

- Diz-me Chapeleiro, para onde vamos?- perguntei eu.

- Não descobrias à medida que ias vivendo? – O tom de voz dele era sarcástico e o seu olhar estava fixo na paisagem que corria livremente pela janela.

- Acontece que nem sempre tenho razão.

- Acontece que quase ninguém realmente a tem. Ainda assim, todos se têm como uma pequena divindade capaz de comandar a sua própria vida e até as dos outros, quando na verdade nem a amar-se a si próprios são competentes. – O seu olhar centrava-se agora em mim – Diz-me jovem, ( Jovem? Pensei eu) que desejas acima de tudo o resto?

- Para além do envelope?

O Chapeleiro esboçou meio sorriso.

- O segredo do envelope não está no seu interior, e és mais tolo do que te tinha se pensas assim.

Enervei-me e elevei o meu tom de voz, não chegando a gritar, mas quase:

- Mas porquê tanto secretismo?! Porque é que um único envelope parece ter a chave capaz de curar todo o mundo? – a minha voz tremia – Peço-te Chapeleiro, imploro-te, suplico-te! dá-me o envelope; tenho de o ter!

- O envelope seria a tua perdição, caríssimo. Digamos que é a nossa pequena caixa de Pandora… por assim dizer. Mas é isso que desejas, a chave capaz de curar o mundo?

- O mundo não pode nem nunca poderá ser curado, independentemente da chave com que o tentes arranjar – parei de falar e acendi outro cigarro – Tento apenas curar-me a mim mesmo, e mesmo assim sabe Deus.

- Deus… – suspirou o chapeleiro com um pequeno sorriso amargo nos lábios – Deus está morto há demasiado tempo.

- E morto está – disse eu­ ­­– mas sempre vai dando jeito para umas expressões.

Ambos soltámos uma pequena gargalhada e um silêncio profundo voltou a instalar-se entre nós sob o atento olhar da Lua.

- Não me chegaste a responder. – disse o chapeleiro – Por isso te pergunto mais uma vez – um carro solitário ultrapassava-nos pela direita – o que desejas desta vida?

- Liberdade. – respondi quase que por instinto – Liberdade de mim mesmo, desta vida de merda, de ter que ser humano, de ter que sofrer, de rir, de ter fome, de me sentir sozinho, de ser tão constantemente inconstante; sempre oscilatório entre a felicidade e um vazio inexplicável da alma, sempre incapaz de ser eu próprio – atirei o cigarro pela janela – E depois há a sociedade… Ah!, sociedade, como eu gostava de ver-me livre de ti e de todos os teus valores tacanhos e falsos. – os meus olhos enchiam-se de lágrimas – Não sei para onde vou Chapeleiro, estou perdido.

- Para a praia – disse ele calmamente – Vamos para a praia.

Fui. Atravessei a ponte àquela hora deserta para o outro lado do rio e, depois de algum tempo de viagem – não muito porque eu conduzia depressa – parei o carro perto da praia, num local onde já se cheirava a maresia.

Descalços, eu e o Chapeleiro atravessámos as dunas e sentámo-nos à beira mar. O areal, já extenso por si normalmente, tornava-se ainda maior devido à maré que estava vazia. O dia começara já a despoletar, e a luz do sol era clara e tornava tudo muitíssimo mais bonito. Tudo parecia estar bem: o barulho das ondas a bater na areia completava uma parte de mim até aí adormecida, e havia paz dentro de mim: uma paz magnífica, quase irreal; quase como tudo aquilo fosse um sonho.

- O segredo das coisas – disse o chapeiro enquanto contemplativa o mar – está no sol e na lua, nas marés e nas estrelas, na montanha e nas nuvens; não num envelope meu caro, nunca num envelope.

De repente, tirou-o do bolso de trás.

-Queres verdadeiramente que abra o envelope?

Estava indeciso: por um lado sempre o quisera abrir e a minha curiosidade era imensa; por outro, aquela oferta contrastava plenamente com o que o Chapeleiro acabara de dizer, o que era suspeito. Antes que pudesse decidir, o chapeleiro abriu-o. Nunca deveria tê-lo feito. As dunas antes desertas mutavam-se rapidamente em prédios cinzentos e em fábricas que expeliam violentamente fumo para a atmosfera; o céu ia ficando progressivamente mais preto de tão escuro, milhares de pessoas encapuzadas corriam pela praia, gritando e chorando num frenesim louco; e, ao longe, uma colossal serpente negra dirigia-se para mim, galgando centenas de metros de cada vez, aproximando-se mais e mais. Os meus pés estavam como que presos ao chão e não me conseguia mexer. O gigantesco bicho olhou-me nos olhos, inclinou-se para trás com a língua de fora e… acordei.

Tinha adormecido à beira-mar e tudo aquilo não passara de um sonho, de um horrível pesadelo. Sonhos daqueles frequentemente afetam o bem estar psicológico de quem os teve; no entanto sentia-me feliz. Mais do que feliz; sentia-me livre: intensamente livre, livre de espírito.

Abri os olhos a custo e olhei em redor. O chapeleiro tinha desaparecido.

Não encontrava justificação para o meu estado de espírito e precisava de o gritar e anunciar ao mundo; de o partilhar com alguém. Pensei que talvez o Chapeleiro estivesse no carro – já que não havia sinais da sua presença no areal – no entanto, quando lá cheguei, este estava deserto.

Abri a porta e reparei que, no banco do condutor, estava um bilhete escrito com letra miudinha.



" Por ti carregarei este fardo, meu amigo. Espero que nos reencontremos um dia, mesmo que não nos reconheçamos. A chave para a felicidade já a tens, e ninguém ta pode tirar. Sê feliz meu caro e nunca deixes que nada te volte a prender. Corre para o mar. Até sempre. "
 

Corri quase que por instinto para Ele. Quando cheguei ao cimo da duna onde tinha estacionado o carro, reparei que no chão estavam uns binóculos. Estranho. Não os tinha visto quando descia para o carro, nem quando subira acompanhado pelo Chapeleiro.

Olhei o mar e espantei-me com a sua beleza: nunca, em tantos anos de vida, havia eu visto algo tão magnífico em toda a sua essência. Fitava-o há largos minutos quando algo que houve algo que me chamou a atenção no horizonte – um pequeno ponto branco em toda aquela vastidão de azul – e apressei-me a pegar nos binóculos que estavam no chão.

Foi então que vi através deles, lá ao longe, um barco a desaparecer no horizonte e uma mão que parecia estar a acenar para mim.

Tomás Castello Branco

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