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Em direção ao Sol

Atualizado: 15 de jul. de 2020

Verão. O corpo do décimo quarto Dalai Lama jaz na calçada fervente. O tempo pareceu abrandar, como se tudo acontecesse em câmera lenta. Como se, no momento em que o seu corpo caiu, primeiro com os joelhos, seguindo-se o tronco e por fim a face, aquela queda fosse a única coisa que ocorria na terra naquele momento. Como se tudo o resto estivesse em suspenso, parado durante breves instantes, e tudo o que estava a ser vivido, fosse a queda do décimo quarto Dalai Lama. Queda que ocorreu devagar devagarinho, enquanto a pequena comitiva que o acompanhava não queria acreditar no que acabara de ver.

O sol árido e quente, característico da altura do ano, batia teimosamente na cara de um dos seguranças de Sua Santidade, que é como lhe chamam os incultos dos ocidentais, não se apercebendo que o termo é incorrecto. Este segurança é um mongol gordo, provável antigo lutador de sumo; daqueles que o K Urban Beach anda a tentar contratar há algum tempo, no mercado de “quem é o melhor a bater em putos bêbados”, mas que optou por continuar a ser segurança do Dalai Lama, tendo-se justificado com os termos “espiritualidade” e “religião”. Desconheço. O governo da China também.

Este sol que bate teimosamente na sua cara, é mais forte do que o sol chinês. Lá, o regime opressivo e a poluição tapam-no e não o deixam passar os seus raios de luz. No meio de cidades que mais se assemelham a formigueiros que abrigam formiguinhas sem liberdade, criadoras do Corona Vírus e com um pénis pequeno, o sol também não faz muito esforço por entrar.

Tudo isto por causa de um conselho meu: “Caga nisso oh Sol, continua nas Maldivas que é muito mais tranquilo e sempre tens umas gajas giras de bikini. Não te esforces tanto.”. E ele cagou.

Se calhar, o melhor é eu parar de dar conselhos. Acho que a Humanidade agradecia. Ainda me arrependo do que disse a Hitler. Enfim.

Mas não estamos na China. Encontramo-nos residência do Dalai Lama, em Mcleod Ganj, uma pequena cidade de casas largas, brancas e amarelas, típicas do Tibet, situada no norte da Índia.

O tempo está quente e abafado e o sol abrasador. É hora de almoço, cerca de duas da tarde, o período de tempo mais quente do dia e, assim sendo, todos os habitantes daquele pequeno subúrbio estão em casa, a esforçarem-se por arranjar diferentes maneiras de fugir ao calor. Apesar do aquecimento global, verão continua a ser verão (só o inverno é que se fode) e as temperaturas naquele pequeno canto do mundo costumam, frequentemente, fazer a calçada ferver.

Calçada fervente onde jaz o corpo do décimo quarto Dalai Lama. Sim, ouviste bem: o corpo do décimo quarto Dalai Lama jaz na fervente calçada de Mcleod Ganj, a menos de cinquenta metros da sombra. Estará a figura viva mais importante do Budismo Tibetano e do Tibete exilado, morto?

Não sei. Quer dizer, saber até sei (não sou nenhum parvo) mas não te vou contar, pelo menos para já. Para já, vou te contar o que se sucedeu naquela manhã antes de tudo ter acontecido.

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Cinco e meia da manhã. Tal como o sol, o Dalai Lama acordou lentamente. Não costumava acordar de madrugada, mas naquele dia apeteceu-lhe acordar mais cedo do que o habitual. Adivinhava-se um um dia cansativo, visto ser o dia mais importante do Saga Sawa, o mês sagrado dos budistas.

Durante toda a sua vida como Dalai Lama, Tenzin Gyatso celebrou de forma intensa este período de celebração. O seu trabalho consistia em pregar às pessoas que fizessem boas ações, dar abrigo, conforto e motivação a peregrinos que vinham de todas as partes do mundo para o visitar, para além de meditar e participar nas celebrações mais importantes. E nunca se havia cansado da sua missão e sempre a havia feito com toda a alma e coração, o que o enchia de uma felicidade pura e genuína.

Porém, aquele ano estava a ser mais complicado do que o habitual. Os 84 anos começavam a pesar: a mente já não estava tão fresca e limpa como havia sido em tempos; a pele começava a ficar cada vez mais e mais rugosa e as pernas pareciam ficar mais doridas e enfraquecidas a cada dia que passava. Estava a ficar velho.

O seu dia de compromisso espiritual só começava às oito da manhã e querendo ter um tempinho para si próprio, o Dalai Lama decidiu sair sozinho do seu templo-casa, antes do amanhecer, antes dos primeiros raios de sol entrarem pela escuridão dissolvendo-a lentamente com a sua luz.

Decidiu que queria ir sozinho apreciar a natureza e inspirar o ar fresco e madrugador das montanhas. Para que tal acontecesse tranquilamente, Tenzin viu-se obrigado a sair de casa à socapa. Saiu à socapa, porque sabia que se alguma das pessoas que viviam na sua casa descobrissem que ele ia sozinho para o campo, tentá-lo-iam impedir e iriam com ele. Mas ele não queria. O que ele queria era ir sozinho. As outras pessoas só chateiam às vezes. Quase sempre.

Saindo do seu quarto em passos de bebe e abrindo a porta lentamente, tentando com que esta não rangesse, desceu as escadas cuidadosamente, sem fazer o mínimo barulho, sempre vigilante a qualquer ruído que significasse que havia outras pessoas acordadas. Depois de atravessar o hall e várias salas de oração, havia chegado à porta de entrada. Sentiu um nervoso miudinho, como sente um miúdo que fez uma asneira e que sabe que, inevitavelmente, os pais se irão zangar com ele.

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Recordou então, saudosamente, os tempos em que fora uma simples e inocente criança, tempos em que fugia de casa com o seu irmão Gyalo.

Os dois traquinas saiam muitas vezes discretamente da pequenina habitação onde viviam juntamente com os pais e com os outros quatro irmãos. Partiam dispostos a explorar a densa floresta e as montanhas íngremes e nevadas que os rodeavam a eles, à sua família, à sua casa e à aldeiazinha de que tanto gostavam. No entanto, só conseguiam explorar uma ínfima porção de cada vez. O que até era bom. Tinham sempre um mundo para descobrir: tudo era uma novidade e havia sempre mais um pedacinho de montanha ou de floresta que faltava percorrer e descobrir.

Quando era criança, não havia telemóveis nem televisões nem computadores nem Internet, por isso os putos, que nem podiam ir à escola, por falta dela, tinham que arranjar outras maneiras de se entreterem. Claro que, quando saiam de casa às escondidas, fugindo sem avisar ninguém, sabiam o que os esperava quando voltassem. O seu pai era um homem austero e rígido e não poupava nas chicoteadas que lhes dava com o cinto. Mas valia a pena, apesar de tudo. Valia a pena porque a dor era temporária (apesar de poder durar várias semanas, deixando frequentemente cicatrizes), mas o prazer e o sentimento de liberdade e de felicidade que os dois rapazes tinham quando fugiam de casa para explorar o mundo e a Natureza era eterno; era intemporal. De tal forma que, aos oitenta e quatro anos, o agora Dalai Lama, continuava a rejubilar quando se lembrava desses momentos de felicidade infantil e não se lembrava de forma tão vincada da dor: tinha só uma ideia.

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Mas estes momentos tinham sido vivenciados há já muitos anos. Desde aí, o simples rapaz da aldeia perdida na montanha havia-se tornado no Dalai Lama, a figura mais importante do Budismo e do Tibete. Desde aí, o Tibete deixara de ser um país independente e livre, e passara a ser um país dominado e subjugado pela tirânica China.

Desde aí, o Dalai Lama saíra do seu país natal temendo pela vida, e indo para a acolhedora Índia, sem nunca mais voltar, apenas com o sonho de o fazer. Sonho que o levara a receber um Prémio Nobel da Paz e que o levava, todos os dias, sem exceção, a lutar por um Tibete livre, por um Tibete Independente, por um Tibete onde cada um pudesse lutar pelo que acreditava. Até àquele dia, ainda não tinha tido sucesso na sua longa e complicada missão.

Sentiu saudades da sua casa, da sua família, do seu país, das montanhas que no inverno ficavam cobertas de neve, dos lagos que no verão serviam de bebedouro a muitos animais selvagens, e sentia, principalmente, falta do seu Tibete, de um Tibete livre. Sentia também falta dos tempos em que ser feliz era fácil e descomplicado, quase como se fosse dado de borla. Sentia falta da felicidade ingénua e pura que se tem quando se é criança.

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Até que abriu a porta de casa. Apesar de ainda estar de noite, os primeiros raios de sol já começavam a quebrar a escuridão. Enquanto a parte diurna da Natureza acordava para um novo dia depois de uma noite de sono, a parte noturna da natureza ia agora dormir, para acordar na noite seguinte. Deixa-me ver se percebes. Como acontece às seis da matina nas pessoas. Tens os jovens bêbados que acabaram de sair da noite, cheirando mal da boca e dos sovacos e tens os “joggers” ou os “runners” ou “as pessoas que se tentam safar das consequências de vinte e tal anos a fumar dando umas corridinhas de manhã” (ou lá como se chamam) que acordaram cedo para irem para correr e que também cheiram bueda mal dos sovacos (e às vezes da boca), mas por motivos diferentes.

Os passarinhos começavam os seus cantigos matinais, liderados pelo Macaco-Líder dos pássaros: um corvo gigante com tatuagens no peito inchado. A sua bonita melodia enternecia o coração de Tenzin, fazendo-o sentir grato por ter acordado e por estar a presenciar aquele amanhecer.

O céu estava numa fase de transição de um azul mais escuro e noturno para azul claro e madrugador, com tiras rosas e avermelhadas a pintarem a abóbada celeste, com a lua a desaparecer no horizonte e com o sol lá ao fundo a nascer devagarinho, dando apenas a luz necessária para se ver miudamente a bonita paisagem daquela aldeia indiana.

Apreciando a beleza e as boas energias que a paisagem e o amanhecer lhe transmitiam, Tenzin desceu a rampa de acesso à sua casa e foi tranquilamente andando pelo resto da aldeia, passando pelas casas das outras pessoas que estavam ainda a dormir, poupando energias para o que se advinhava um dia em cheio.

As luzes das casas estavam todas desligadas e, satisfeito por ninguém o ter ido incomodar, o Dalai Lama lá saiu da aldeia e pôs-se a explorar um trilho que dava para as montanhas. Percorreu um grande troço do longo caminho de terra, acompanhado apenas pelo cajado de madeira que o ajudava a andar e pelo cantar das cigarras. À medida que percorria mais caminho, ia se embrenhando cada vez mais e mais na Natureza selvagem, sentindo-se livre e em paz, como não se sentia há já algum tempo. O trilho acompanhava as curvas das montanhas verdejantes e repletas de vida, sendo por isso mandatório a certa alturaque o já velhote Tenzin forçasse as suas frágeis e magras pernas a subirem os íngremes caminhos de cabras. Porém Tenzin já não era o jovem que havia sido em tempos e, depois de umas difíceis subidas, sentiu a necessidade de repousar durante uns largos minutos, aproveitandoa pausa para olhar em volta. O céu estava já mais iluminado e claro, com o sol relativamente alto no horizonte e com a lua já completamente fora de vista. As tiras rosas e avermelhadas já não eram tão intensas mas continuavam lá, se bem que agora fundidas nas pequenas nuvens que iam maravilhando a vista do Dalai lama. Eram cerca das seis e meia da manhã.

Sei que já te disse e que já deves estar farto de me ouvir dizer que o Dalai lama estava feliz e em paz, submerso no meio da natureza, mas é verdade e só o digo tantas vezes porque é verdade. E o que é que os Budistas fazem quando estão neste estado de espírito? Meditam.

Sendo a figura viva mais importante do Budismo, o Dalai lama foi procurar um bom local de meditação. Após seguir um caminho mais estreito que virava acentuadamente à esquerda, interrompendo as escarpadas subidas da montanha, Tenzin Gyato deu por si diante de um belíssimo lago de águas azuis, rodeado de erva verdejante e, lá ao fundo, um grande chorão. Espantado pela beleza do local que desconhecia, o Dalai Lama decidiu-se em ir até àquele grande chorão.

Quando lá chegou, afastou os ramos que lhe magoariam o rabo caso se sentasse em cima deles e começou a meditar. A sua cabeça estava vazia e boas energias percorriam-lhe o corpo e a alma, fazendo-o sentir em perfeita harmonia com a natureza que o rodeava, como se fossem um só. Começou então a sentir-se iluminado e a ouvir uma voz distante que ia ficando gradualmente mais próxima e perceptível.

Até que essa voz se tornou real, grossa e ecoada, e começou a falar com ele, sobre a forma de uma coruja que estava pousada num dos ramos do chorão. Esta coruja não passava de um animal, de um corpo que Budah tinha assumido para comunicar com o Dalai Lama:

- Tenzin - começou - não imaginas o quão estou grato por tudo o que fizeste por mim aí em baixo na Terra. Não imaginas mesmo. Por todas as vidas em que tocaste, por todas as pessoas que ajudaste nos seus momentos mais difíceis, mesmo sem estares lá efetivamente, só por existires, só pelo que tu representas. Apesar de toda a minha gratidão, tenho que te pedir uma coisa, meu caro. Sei que é difícil, mas tenho que te pedir que morras. Sim, tenho que te pedir que morras hoje, às duas da tarde.

E começou então o Dalai lama a ter visões. Viu-se a chegar à sua casa-templo, cansado e suado do sol, à hora de almoço. Viu-se a entrar dentro de casa, e, ao chegar à sala de orações, viu uma dúzia de homens armados, de olhos em bico e com a cara tapada, que o raptaram e o puseram dentro de um helicóptero. Viu esse helicóptero voar incessantemente por cima das montanhas e a levá-lo para um aeroporto que não conhecia. Viu-se dentro de um avião, com as mãos atadas e rodeado de homens chineses que falavam e riam alto. Viu-se dentro de uma sala escura, num prédio alto em Xangai a ser torturado e viu uma câmera a filmar a tortura. Viu declarações de Presidentes de outros países a declararem guerra à China, caso ela não libertasse são e salvo o Dalai Lama. Viu se a morrer, com um tiro na cabeça. Viu o seu espírito a não reencarnar noutro corpo, preso numa caixa, desesperado. Acordou.

- Isto, Tenzin - prosseguiu a coruja - isto será o que te vai acontecer se não morreres hoje às duas da tarde, quando sentires um sopro de vento fresco no teu coração e te deixares ir. É imperioso que o faças. Se tal não acontecer, todas as visões que tiveste serão realidade: terás uma morte inglória e a tua alma não será capaz de reencarnar noutro corpo. Lembra-te. Às duas tarde, hoje, antes de chegares a casa, sentirás um sopro no coração. Deixa-te ir Tenzai. Deixa-te morrer. Deixa o teu espírito reencarnar noutro corpo. Deixa-te ir Tenzai, acredita que não sentirás dor. Irás cair primeiro de joelhos, depois seguir-se-á o tronco e depois a tua face. O teu corpo jazerá na calçada fervente, morto, mas o teu espírito viverá noutro corpo, noutra pessoa. Só assim poderás continuar viver e só assim o Budismo poderá continuara existir. Adeus, Tenzin. Não te esqueças, deixa-te ir.

E a coruja voou para longe, em direção ao horizonte, em direção a uma nova vida, em direção ao Sol.

1 comentário


mafarosil
08 de jun. de 2020

Adorei!

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