A mercearia ainda deve estar aberta
- Igual Ao Resto
- 21 de nov. de 2020
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Há noites em que a gasolina nunca atravessa realmente a estrada e os surdos? bom, os surdos deviam era fechar a merda das portas e deixar-me chorar. De vez em quando acordo com os espíritos a ligarem-me de madrugada e é nesses momentos que eu dou por mim amarrado ao mundo inteiro sem conseguir fugir, como um candeeiro abandonado pelas corujas. Se me visses nesse candeeiro (ou mesmo nas corujas) não me reconhecerias. Pessoas como tu – afinadoras de harpas por ocupação e limpadoras de vidros ao fim-de-semana – preferem certamente ver-me nas palmeiras que abanam com o vento ou até nos perfumes insípidos que usam os centauros. Outras, as desesperadas, tentam avistar-me em todo o lado e em todas as sombras – sem sucesso. Por fim, as poucas sobre as quais a luz incidiu à nascença, vêem-me no silêncio da noite, estúpido e aterrorizador, e nos jovens que se amam às sete da manhã. Mas nada disso é correto. Eu sou – na minha essência – o frasco de neutrónio que Jesus bebeu antes de caminhar pelas águas e as gaivotas que se suicidam quando deixam de poder voar. Ainda por cima, os losangos que dizias formatarem o meu mapa-múndi já não existem, sendo ele agora exclusivamente composto por bois demasiado grandes para caberem no estábulo. Costumo aludir que é precisamente por isso – e por tudo o resto – que os nossos corpos se fundiram na única noite em que as estrelas se deslustraram com a tinta dos prédios. Hoje em dia, só me perguntas se a antiga e enferrujada bicicleta do Sr. António ainda fuma cigarros por entre o nevoeiro e eu respondo que não, que já nem sei o que é feito do Sr. António e que a maior parte dos cigarros já passou de validade. O caminho que costumava fazer para tua casa também já não é o mesmo – não só por eu já não saber qual é a tua casa – mas por se ter tornado quase igual ao que me leva – dia sim dia não – ao abismo onde começam as estações de serviço que compõem o deserto. É com este abismo que a Poesia tenta desesperadamente curar os mortais desde o início dos tempos. Digo-te: se não fosse ele, com certeza estaria morto.
Ao menos isso.
Tomás Castello Branco
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