If only we lived a little longer
- Igual Ao Resto
- 30 de jan. de 2021
- 2 min de leitura
Estava tudo tão terrivelmente silencioso naquela noite
que eu tive a certeza
que a cidade inteira acordaria – tremendo e talvez tiritando –
com o teu incessante choro
a não ser –––––––––– claro está
que passasse um avião
ou que os professores da caça ao caranguejo
deixassem a sua caneta
anti gravítica cair em montes de palha neolítica
e hipotecassem todos
os armazéns do Vale de Lisboa e do Tejo.
E vejamos:
mesmo se a cidade inteira acordasse
com as tuas lágrimas
um terço ficaria feliz porque assim finalmente
teria música para dançar
outro terço pôr-se-ia a recitar de cor
as três principais consequências da Revolta Siciliana
e as duas últimas metades dividir-se-iam
em dois, depois em três, depois em quatro, depois em cinco
e em seis e em sete e em oito,
até não restar mais ninguém.
Por isso não receies nem tenhas vergonha
chorar não passa de um desabafo
de todos os pastores e marinheiros,
de todos os piratas e trabalhadores rurais,
e de todos os operários da República do Congo
e dos índios místicos dançando por entre os vulcões à chuva
que foste antes de nasceres.
Então deixa:
deixa a cidade
conhecer os gladiadores,
os milhares de escravos andando em
direções opostas,
os deuses guerreando por Olimpo
e os Brutus e os Césares que foste;
os milhões de avenidas atribuladas,
os velozes cavalos de corrida
e os divórcios estonteantes e vertiginosos que és ainda;
as duas avestruzes sensação que andam de carruagem em carruagem
levantando olhares no comboio-bala
e os dois árabes que descarregam fruta em frente a uma montanha russa
que um dia serás.
Se olhares bem para a serra,
verás, nas labaredas do convento medieval,
os galos de Mato Grosso
– com tristes lágrimas escorrendo pelas suas sagradas capas pretas –
cantando alegremente enquanto as chamas lhes consomem os corpos
e, tanto à esquerda como à direita
dos teus olhos,
a cidade acordará.
Tomás Castello Branco
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